domingo, 14 de novembro de 2010

O Cágado (poema de Guimarães Rosa)

Numa dobra da serra
há um minadouro,
uma bica,
e um poço azul.
E ali, na água redonda, pequenina e fria,
mora um cágado escafandrista,
filósofo pessimista,
que tem a mania de perseguição.

Quando o sol bate de cheio,
ele traz para fora a cuia emborcada,
e se aquece, aberto, em cima da laje,
chato, cascudo e feio.
Mas, se alguém pisa perto,
ele escorrega e pula, na água mansa
que explode e respinga.

Leva bom tempo
para assomar o focinho
de periscópio.
Mas, se é falso o alarma,
lá vem aflorando, levemente, à tona,
a concha remendada com fiapos de limo.
Depois, mais afoito,
o prudente reptil
passeia o dorso, convexo e abaulado,
como um “U-18”
da base de Kiel.

E o caipira guarda a vida do monstrengo
(Ai! meus pecados todos!...),
se o matarem, o olho d’água se evapora
(Ai! minha felicidade pequenina!...)
E o cágado, lento e pré-diluviano,
na cacimba da grota, espera outro Dilúvio...


Do livro de poemas Magma, de João Guimarães Rosa

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