segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Lambreta

A memória é fugidia,
o tempo uma referência.


Como gladiadores, as formigas uma a uma se enfrentavam. À vencedora o pior destino: enfrentar a próxima, e a próxima... A maior ou a mais forte. Garras contra garras. Cada menino com seu guerreiro, cada formiga com seu destino. Como César e seu polegar.
Crueldade e inocência: o remorso pune.
Meu guerreiro imbatível após uma semana de glória, tomba. Nunca. Nunca mais hei - de. Nunca mais. Inocência perdida. Nunca mais hei – de.
Um cheiro invade o ritual triste. Enterramos todas. Oração e remorso. Dor.
Alegria. Quitanda lá em casa? Pão de queijo quente. Quentinho. O cheiro impetuoso do fogão se mistura ao da terra. Esqueço meu desatino. Perdão. Seremos perdoados um dia? Vida que segue.
Um chamado. Certamente, um chamado. Pára tudo – euforia – pão de queijo!!!
Corre. Corro. É preciso ser rápido. Minha mãe me chama: - Tá pronto. O Pão de queijo tá pronto!!!!  Bora lá, quentinho é muito melhor. Perco-me nessas lembranças. Minha mãe, fogão de lenha. Pão de queijo, comida de minha mãe. Queria de novo, nunca mais. Do que será que ela se lembra? Vou perguntar. Nada.
Acorda! Perdão meu guerreiro. Nunca mais hei-de.
Atravessa à rua, o menino corre. Sem olhar. Alguém grita: - Espera!
O tempo. Uma faca que aponta. Pra onde? Viagem de físico, coisa de gente doida. Descrever o tempo com números. Racionais ou irracionais?
Era tarde. O gado precisava atravessar a cidade. Cidade pequena era assim. A gente não sabia onde era a cidade, onde era o morro, onde era a mata. Vez por outra corríamos feito gente grande a descobrir o mundo. Embrenhávamos na mata procurando jatobá maduro ou atrás de assombração. Achava? E não? Se variar, tô variando. Lá vinha o gado. Coisa de todo dia. Era a lida do meu peão. Zé Maria da seleção. Meu lateral, hoje seria um autêntico ala. Corria muito. Era veloz e resistente, feito uma lambreta. Será? Naquele tempo nem havia moto. Motocicleta.
No domingo a gente não perdia uma. Lambreta e Norberto no gol. Melhor que o Renato. Pegava todas. Morreu na faca. No puxa-faca. Crime e castigo. À margem, na lateral corriam minha, nossas vidas. Direito. Direito não era, mas o certo. Tinha que cumprir. Atravessava a cidade, Capim, todo dia campeando o gado, campeando a vida. Aboiava a lida de todos os dias. Domingo não. Amanhã tem jogo. Zé Maria. Seleção. Um sonho. Um sonho.
Acorda! Menino acorda!
Lá longe. Uma boiada. Um peão: - Acode! -A boiada estourou - alguém grita. A cidade em alarde. Corre. Cerca!
-Olha o gado! -Gente olha o gado! Saiam, saiam da frente!
Menino. Menino! Olha a boiada! Pára. Pára? Não, era melhor ter atravessado. No meio da corrida, o menino pára. Na rua, Recife. No Meio do Mundo. Que confusão é isso? Um bar chamado meio do mundo? Guimarães Rosa. Tutaméia. Ilusão, um sonho. Dias que virão para o menino.
Pára o menino. A boiada não. –Não! O peão grita.
Um segundo. Tenho que agir. Corro. Corro mais. É preciso salvar o menino. Mas meu cavalo é bravo. Salta na frente.  Incontrolável. Um bicho, uma fera. Parece até um demônio. Um demônio vingador de formigas. Será? Acho até que sai fogo de suas narinas. Seu casco procura o menino. A pata, patada. Salta. Mas eu salto junto. Animal, animais. Somos todos. Guerreiros e formigas. Puno. Pune. Um salto pra morte.
Meu vôo. Meu menino também voa. Tarde demais:
- Eu matei. Eu matei. Eu matei o filho do Moisés! Eu matei o filho do Moisés!
A multidão observa. Inertes. Ninguém ajuda?
Meu guerreiro, com o joelho arrebentado, me ergue em batalha. Tomba. Não resiste. Caio, ergue-me novamente. De novo ao chão. Quantas vezes mais, sem que alguém se mova? Minha cabeça três vezes ao chão se perde. Desmaiamos enfim. Ainda bem.
- O menino está bem, respondia o médico.
- Não, eu matei. Eu matei o filho do Moisés. Eu matei, retrucava o peão jogador.
- Não, o menino está bem. Mas e você? e você?, insistia o médico.  
E feito ave num conto funesto persigo ainda hoje: E você? E você? E você?



Agosto de 2008   por  gguimalem
                                                                                  

2 comentários:

  1. esse texto é muito doido! adoro! e o fim tem o mesmo refrão que a musica baddeneiro da nave vaga 'E você?'com uma força tremenda!

    parabéns pelo poetar ao caminhar pela vida.

    bj

    Tatiares

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  2. Valeu Tati! São as coisas, as idéias, os pensamentos e gente...toda a hora se cruzando. Brigado demais da conta!

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